quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

"O Inventor de Quimeras" (3ª parte)



Por isso, se existia alguém nesse mundo que ela poderia culpar pelos seus problemas, esse alguém era o negrinho que tinha sob seus cuidados e que exercia total poder. A culpa por estar gorda era de Sidney. A culpa pelo abandono dos maridos era dele. Sua dificuldade financeira era por culpa dele, e não por culpa da bebida, como diziam alguns conhecidos. Por muitas vezes disse a ele como era um fardo tê-lo como filho. Como Deus a amaldiçoara quando engravidou e deu a luz a um menino tão ingrato.
Mesmo assim era fiel a sua mãe. Fazia de tudo para agradá-la. A culpa interiorizada por toda uma vida, era suficiente para que Sidney respeitasse-a como mãe, e entregasse a maior parte de seus rendimentos a única mulher que acreditava ama-lo. Na certa, ele mesmo já sabia que aquele dinheiro não custearia as contas, pois ela costumava gastar a maior parte dele no bingo e com álcool. Mesmo assim ele entregava quase todo o seu salário como servente para ela, sob pretexto de ajudar nas despesas do barraco caindo aos pedaços onde os dois moravam. Tinha um dever a cumprir. Estava preso a ela. Possuía uma dívida, e seu credor era a própria mãe. Ela lhe presenteara com a vida, e o mínimo que podia fazer era ser fiel a ela. Entretanto, quanto mais ele pagava o que devia, mais sentia que havia um aprofundamento desta mesma dívida. A dor e a culpa que sentia por ser um péssimo filho e o principal motivo pelo abandono dos ex-maridos de sua mãe, pagavam apenas os juros desta transação doentia, produzindo assim mais dor, e mais culpa. A sensação que Sidney tinha era de que se tornara devedor para sempre. A dívida jamais poderia ser liquidada.

Mas como era típico de Sidney, ele parecia não se importar. Parecia até sentir prazer extraído de tanta dor. Encarava os acontecimentos de sua vida com uma leveza que era de dar inveja a muita gente. Estava sempre sorrindo, e cantarolando canções que ouvia no velho rádio Semp do seu quarto. Era sempre muito simpático com a vizinhança da comunidade. Dava pra sentir o bem estar do rapaz de longe. Porém aquele comportamento escondia um mecanismo de defesa. Estava apenas encenando um papel. Na verdade estava a ponto de explodir. Desesperado, procurava uma saída. Afinal, como agir quando a vida se torna o mais pesado de todos os fardos e a origem de todo o sofrimento? O que fazer quando tudo o que você acredita, suas verdades mais profundas, seus valores mais elevados se tornam uma mentira? Não seria natural inventar verdades ilusórias para si? Inventar fantasias que serviriam como escapismos e anestésicos?
Só assim sobreviveu a tudo isso sem enlouquecer, utilizando-se de uma estratégia.
O que nem todos sabiam é que aquele rapaz criara um mundo à parte de toda sua realidade. Longe de toda aquela imundície. Distante do esgoto correndo a céu aberto e dos viciados em crack. Longe da pobreza extrema e dos olhares de desdém dos grã finos dos bairros adjacentes. Distante dos estupradores de criancinhas e da ditadura do tráfico de drogas que impõe suas próprias regras e que oprimem os moradores da favela. À quilômetros das vielas fétidas e de toda baixa estima por si mesmo. E esse mundo era o mundo dos livros e da literatura. Quando lia, tudo aquilo desaparecia. Quando escrevia em seu velho caderno se sentia leve como uma pluma. Nesse mundo era senhor de si mesmo. Era transportado para outra dimensão. Não era uma aberração, um negro de raça inferior, pobre e degenerado. Nesse mundo havia possibilidade de vida. A vida pulsava nas entrelinhas. Um livro é um passaporte para um outro universo, o universo do herói e de suas aventuras. O mundo do herói que sem saber existia em si mesmo. O mais legal nas tragédias gregas são os atos de coragem dos seus heróis, que mesmo tendo contra si um destino predeterminado infestado de terríveis suplícios, não fogem deste destino. Ao contrário, afirmam este mesmo destino.
E essa falta de coragem em viver sua vida, que começou a deixar Sidney com mais ódio de si mesmo. Essa falta de ação que teimava em não ir embora. A culpa por abandonar a mãe, que sempre o desprezara. Pelo medo que tinha no desconhecido, por não saber o que lhe aguardava. Por tudo isso sentiu que era hora de uma mudança que deveria ter feito a muito tempo. Agora, mais do que nunca queria ir de encontro ao seu destino. Não era esse o papel da literatura e dos livros que ele tanto amava? Despertar nele esperança para agir? Faze-lo enxergar uma fagulha de possibilidades na infinita escuridão do vazio e desesperança que se encontrava?


Esse conto continua.........
(To be continued)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

"O Inventor de Quimeras" (2ª parte)



Entretanto sua mãe sempre deixou claro sua opinião em relação a livros e qualquer atividade intelectual. Gritava pra quem quisesse ouvir que ler livro era coisa pra vagabundo com preguiça de trabalhar. Segundo ela os livros que Sidney leu, não serviram (e nem serviriam) pra nada útil, a não ser desperdício de tempo que poderia ser gasto tentando arrumar dinheiro. Além disso, ela parecia descontar nele com todas as forças, sua insatisfação e frustração por ter sido abandonada por quatro maridos. Sidney era filho do primeiro; um negro viciado em crack que deixo-os após tomar conhecimento da gravidez da mulher. Fugiu assim que soube o resultado do exame. Ele nem chegou a conhecer o pai.

O segundo marido, ela conheceu num forró na favela quando ele tinha a idade de três anos. Num dia quando foi dar banho no menino ficou preocupada com algumas manchas em sua pele. Eram manchas de queimaduras nos braçinhos, nas perninhas e no abdômen. Logo se descobriu que o homem com quem ela vivia, queimava o garoto com a brasa do cigarro. Mesmo assim ficaram juntos por mais três anos. As manchas de queimaduras continuavam a aparecer. Ela fingiu não ver o que estava acontecendo, certamente para não perder seu homem.

Depois de um tempo ela conheceu o terceiro marido, primo de uma amiga da viela de cima. Ele também era viciado em crack. Seu temperamento colérico não dava espaço para o diálogo. Batia nela e no menino todas as vezes que não conseguia dinheiro pra comprar pedra. Quando não estava usando droga, estava praticando seu outro passatempo predileto, encher a cara de cachaça. Bastava tomar um pequeno gole que seu comportamento se transformava completamente. Virava um animal raivoso. Revirava os cômodos do barraco procurando alguma coisa de valor pra trocar na boca. Quando a mãe de Sidney decidiu que não agüentava mais, ele já tinha vendido metade dos móveis da casa.

O quarto e ultimo ex-marido, não foi muito diferente dos outros. Apesar de no início do relacionamento, ter-se a impressão de que se tratava de um rapaz de bem e de que ela finalmente acertara na escolha de um homem, não foi assim que aconteceu. Crente fanático, ele obrigava os dois a lerem a bíblia horas por dia. Recém convertido, e com um passado que fazia de tudo para esconder, acreditou que Jesus o tinha mudado. Costumava dizer que um contato constante com a palavra do Senhor afastara os demônios de sua vida. Acreditou que Deus expulsara as vozes de Satanás de sua cabeça. Vozes que o induziam a fazer coisas horríveis. Essas vozes o atormentavam desde criança. Ele tinha plena certeza de que elas eram do mal, e que faziam de tudo para afastá-lo do caminho de Deus. Mas pela fé, vencera o mal e queria muito que os dois experimentassem essa benção. Da ultima vez que ele as ouviu, não teve forças para expulsá-las de sua mente. Estuprou a sobrinha de apenas doze anos de idade logo após a voz obriga-lo a fazê-lo. Quando Sidney estava com a mesma idade, fez o mesmo com ele. O garoto até tentou falar com a mãe sobre o acontecido. Mas ela não acreditou. Preferiu acreditar no marido. Achou que o garoto tinha inventado tudo aquilo por ciúmes. O relacionamento finalmente acabou quando ela descobriu que o marido havia engravidado uma garota de quinze anos de idade que ele conhecera na igreja.

Esse conto continua.........
(To be continued)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

"O Inventor de Quimeras"


Aparentemente Sidney era um típico jovem morador de uma favela de São Paulo. Servente de pedreiro começou a trabalhar em uma construtora com sede no centro da cidade, aos treze anos de idade. Já naquela época via-se que o garoto vivia com a cabeça nas nuvens. Tinha a imaginação fértil, como se costuma dizer por aí. Inventava histórias e colocava-as no papel. Fazia capas e sentava no passeio admirando sua própria obra, fingindo ser um livro comprado numa livraria chique. Nessa mesma época, disse para si mesmo que compraria todos os livros que pudesse. Teria uma biblioteca particular a disposição, seria um homem culto, um professor de faculdade que ficaria rico passando a frente todos os anos do conhecimento acumulado. Entretanto, salvo o fato de estar sempre lendo (lia até embalagem de shampoo no banheiro), não foi assim que sucedeu.

Preto e pobre herdou dos pais o vicio do álcool, no qual fez com que virasse freqüentador assíduo dos botecos da comunidade, sendo conhecido pelos donos dos botequins por seus estranhíssimos hábitos. Dentre alguns, tinha essa mania de ler livros emprestados de uma biblioteca, sentado no fundo do bar, tendo como singela companhia apenas uma garrafa de cachaça. Lia romances clássicos e filosofia contemporânea dos quais adquiriu notável erudição, se analisadas as condições sociais e econômicas que teve acesso. Alem disso, fumava apenas cigarros de palha que ele mesmo fazia, dos quais dizia ele: ‘eram mais saudáveis dos que os comprados prontos’.

É realmente pouco comum ver um jovem lendo (dentre muitos outros livros) ‘A peste’ de Albert Camus no fundo de um boteco de favela, onde os freqüentadores só conseguiam escrever precariamente o próprio nome, porém isso não é improvável. Ainda mais bebendo caninha 51 (que em minha opinião é uma cachaça de péssima qualidade) e fumando cigarrilhas feitas por ele mesmo. Mas pelas feições do seu rosto cor de piche, e pela total falta de pudor em seus gestos corporais, não parecia se preocupar com o que o senso comum achava de seus hábitos e costumes. Para ele, no momento em que se sentava nas cadeiras enferrujadas dos botecos da comunidade para ler um bom autor, era como se desligasse da trágica realidade que tinha que enfrentar todos os dias quando acordava pela manhã. Visitar um outro mundo a cada livro. Conhecer culturas diferentes das quais nem imaginava existir, sem sair da favela onde viveu toda a sua vida. Essa sensação de desprendimento que ele adorava. A sensação distanciamento de si mesmo que a literatura proporciona, era indescritível para ele.

Esse conto continua.........
(To be continued)


P.S.: O tíulo acima "O Inventor de Quimeras" é o título definitivo deste conto.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Ode ao esquecimento


"Sem cessar, uma folha após a outra se desprende do rolo do tempo, cai, flutua por um momento, depois torna a cair nos joelhos do homem.
O homem então diz: "lembro-me", e inveja o animal que se esquece de imediato, e que vê de fato morrer o instante assim que ele torna a cair na bruma e na noite e se apaga para sempre".

Friedrich W. Nietzsche. (Meditações Inautuais)
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